terça-feira, 25 de setembro de 2012

Igual.

    Era o quinto aniversário da minha neta. Ali estava ela, com meu filho, ajoelhado, arrumando sua coroinha. Senti um calorzinho dentro de mim vendo ele sorrindo sem desdém à sua filha. Depois que ela foi ficar com minha nora, Henrique veio falar comigo. Como estou orgulhosa, pensei. De ele poder ser alguém que pouco tive na minha vida, que pouco teve em sua vida e cumprir esse papel tão bem.
   Vieram muitos convidados e o jardim da casa deles estava cheia de balões, pessoas fantasiadas e comidinhas. As músicas eram irritantes, mas eu ainda estava bem, conversando com as pessoas.
   Assim que a festa acabou nossa pequena Ana Clara ainda estava cheia de glíter rosa, andando daqui pra lá sem parar querendo abrir todos os presentes. Todos.
   Dei meu presente a ela, depois de chamá-la para pertinho de mim. Disse "É para você guardar bem. Tá bom? Vovó ama muito você, coisinha". Beijei-a e ela logo abriu o embrulho com o souvenir que foi concertado. Uma bola de cristal, apenas com pedrinhas coloridas que brilhavam.


   Após terminar de ler um livro, fiquei com uma vontade impulsiva de tomar um cafezinho. Abri as cortinhas da sala e fiquei pensando se ia ou não dar uma volta enquanto olhava a rua vazia da minha casa.
   Decidi ir à Vila Madalena, em uma cafeteria que adoro. Cheguei a avenida e chamei um táxi. Taxistas são peculiares, pensei, ao avistar um. Só dei o endereço e ele já foi me falar do tempo paulista. Aumentou o som da música sertaneja que tocava, mas em instante pedi para ele abaixar o som "por gentileza, que meus ouvidos estavam sensíveis pela idade". Não me importei se tinha sido rabugenta, só fiquei ansiando chegar na cafeteria em silêncio.
   Chegando já estava sentindo o cheiro de café sendo moído. O barulho amável das máquinas de café parecia me chamar pelo nome, de leve. Abrindo a porta cheia de folhas daquele ambiente de jardim bem cuidado, ouvi um lindo ritmo de jazz sendo tocado e me senti muito bem de ter escolhido ir àquela cafeteria, naquele momento. Até sentar e ver. Alguém que um dia foi meu marido. Alguém que já havia chamado de "meu". Então, ele olha pra mim. Mudo de lugar para sentar longe dele, perto a porta. Ele vem até minha mesa com calma e me pergunta como estou. Não respondo. Então vejo no pulso dele o pingente que dei, uma peça de um dos meus souvenirs e olho para seus olhos. Ele diz "Vou embora e deixar você em paz".
   "Espero que Henrique esteja sendo um bom pai".
   Pedi meu expresso e me levantei, andando aqui e ali olhando as xícaras a venda e os pacotes de chá e café do estabelecimento. Volto à minha mesa e logo o café chega. Coloco meus usuais 2 sachês e começo a apressiar meu café encorpado. Solto um suspiro e olho para a porta por onde ele saiu. 
   Concluí que mesmo após tantos anos, as falsas esperanças permanecem.


   Abri os olhos e o quarto estava escuro. Era quase noite e tentei me debruçar mais nas cobertas pra ver se voltava naquele gosto doce e amargo do sono. Mas já estava desperta. Então, levantei-me fui ao banheiro e me olhei um pouco no espelho. Observei meu rosto e me senti...vazia.
   Depois de pentear meus cabelos grisalhos, vestir meu conjunto casual azul, passar uma água no rosto, abri a porta de casa. Senti o cheiro forte das árvores que estavam sendo cortadas, olhei as folhas no chão junto com flores amassadas e continuei andando. 
Vendo as ruas familiares passando, sem conflitos, me deixei pensar. Descobri ao longo dos anos a presença da querida mentira, sorri, espontaneamente. Aquela que me livra de sustinhos, mas não de problemas, que tira de mim o que está na minha frente, porque me cega, que me dá mais medo com a crescente vontade de permanecer junto com ela, me aprofundando em coisas que me prendem numa gaiola com comida de mentira.
   Chegando na locadora, olhei os filmes que haviam chegado naquele dia e pedi a  mim mesma que me perdesse em mais um filme, vendo aquela história como real para esquecer a minha.

sábado, 22 de setembro de 2012

Singela libertinagem.

   Aquela mulher estava péssima. Nunca vi igual alguém passar tão mal mesmo na cama de hospital. Cirrose não era brincadeira nem de olhar.
   As vezes, a noite ela chamava por meu nome e eu me perguntava porquê aquilo estava acontecendo. Depois de ter sumido por tantos anos, ela apareceu, na porta de casa, desmaiada para arruinar uma paz que eu criei sozinha.
   A noite, enquanto voltava para casa do hospital, estava tentando esquecer a raiva que sentia ouvindo minha mãe me chamando de "Helê". Ela nem me conhecia mais.
   Escolhi filmes que podiam me levar a outros lugares. 
Meus tios estavam viajando junto com Laura que agora estava ficando da minha altura. Deixei as luzes apagadas mesmo e só botei o dvd com a luz do celular. E então me deixei levar.


    Mas naquela noite se deu ao luxo de ser, novamente, adolescente. No centro da pista de dança, em meio aos frenéticos flashes e lasers, pulava e mexia-se animalescamente ao som daquela música de três acordes e letra repetitiva, dava as mãos para seu namorado e pedia que lhe rosasse; beijava-o, encostando-o na parede de modo que os hormônios quase fossem vistos explodindo entre os dois. Naquele dia não se preocupada em agir de acordo com vazio e superficial julgado por qualquer um, mesmo ela. Naquele dia queria beber mesmo sabendo que iria dormir enjoada, queria fumar mesmo sabendo que acordaria tossindo; naquele dia talvez até quisesse mesmo experimentar as drogas que nunca teve coragem, pois antes tinha medo. Medo de perder-se de si. Mas naquele dia queria sim, perder-se; queria dividir-se em duas e jogar sua metade amarga e metódica fora. Queria ser a jovem rebelde cheia de si, dona da verdade e conhecedora da vida, que saiu de casa batendo o pé e a porta por qualquer motivo banal, deixando a preocupação com o dinheiro, horário e carona. E por alguns minutos talvez tenha conseguido com a sensação hiperativa, irreverente e inconsequente forjada pelo álcool do genuíno, nobre e entrópico sentimento de liberdade. 

 


Por Letícia Kim & Gabriela Zimberg

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Capítulo 3

   Estava olhando minha estante e vendo os souvenirs. Comecei a olhá-los de perto pra ver quais gostava mais e se seria capaz de dar todos mesmo. Alisei a gaita vermelha, brilhante, que papai deu por último. Tinha dito ter ganhado de um homem barbudo que tocava na Itália.
   Indecisa, fui ver as pessoas. Desci as escadas, rápido, imaginando que tipo de pessoas mereceriam meus souvenirs e o que poderia acontecer. No portão, avisei ao zelador que era segredo eu ter saído do prédio com muita seriedade. Aquele homem era muito suspeito, ainda sim.
   Me encaminhei à avenida e muita gente estava passando. Me posicionei espertamente ao lado da maior árvore que tinha na rua. Mas as pessoas estavam andando muito rápido e os únicos que ficavam eram velhinhos de chapéus cinza. Então, fui andando mais para onde tinham mais árvores, por intuição.
  Perambulando um pouco, achei o parque daquele bairro e fiquei atrás de um carrinho de pipoca, para observar as pessoas. Havia uma mulher, mais ou menos jovem, sozinha. Vendo melhor, percebi que estava olhando fixadamente para um colar quebrado. Ou melhor, com uma corrente e um pingente separados, sozinhos. Por muita curiosidade, deixei meu coração me guiar e me aproximei dela. A cumprimentei alegre, mas logo perguntei o que tinha aquele colar. Apenas me disse que era especial mas devia jogar fora peças que não se encaixam mais. Pedi que esperasse um pouco. Saí correndo de volta ao apartamento. Chegando na porta de casa, arfando, entrei no meu quarto. Olhei os souvenirs, e achei o que precisava. Pulseira cheia de pingentes grandes. Tirei o pingente de bicicleta e peguei um bocado de barbante e voltei a correr.
   Procurando aquela moça no meio das pessoas fiquei angustiada. Quando a avistei chamei por ela. Disse "Seu colar ainda pode ser especial", pedi ela a corrente e pus o pingente no meio, também, amarrei o barbante nas pontas para unir a corrente. Ela olhando minha arte-manha deu um grande sorriso e me disse "Muito grata, pequena". Fiquei feliz. Senti que ajudei alguém e que aquele pingente estaria mais que em boas mãos.
   A partir daquele acontecimento, passei a frequentar o parque todos os dias. Descobri que metade das pessoas que ali frequentavam eram novas enquanto a outra metade estava sempre lá. Ficava observando aquelas que pareciam solitárias, sempre com souvenirs no bolso, um bloco de anotações e uma caneta para deixar uma mensagem junto com um presente misterioso. A melhor parte sempre era a reação das pessoas. Algumas davam risada, outras pareciam tentar entender e outras sorriam de leve.
   Enquanto a estante de souvenirs ia se esvaziando, o dia de dar a gaita vermelha se aproximava. Alguns souvenirs, eu guardei para não dar a ninguém. Mas sabia que aquela gaita podia fazer outra pessoa mais feliz. Então, mantive ela até ser a última das que sobraram.
   Uma das pessoas que mais vinha ao parque era um senhor de chapéu azul marinho que andava de lá pra cá consertando alguma coisa com suas ferramentas. Mas certa vez, o vi concertando uma gaita e fiquei bastante surpresa. A gaita era bem pequena, parecia com a minha, só que era azul. Ah, e tinha uma figurinha.
    Fiquei observando ele por mais dois dias. Nesses mesmos dias ele não estava conseguindo consertar a gaita e ficar em paz. Fiquei imaginando se meu pai ficaria contente se eu desse a gaita. Levei comigo a gaita, mas queria saber de uma coisa antes.
- Olá senhor!
- Oi minha jovem...
- Senhor, por que está concertando essa gaita há tanto tempo?
- Porque prometi ao meu filho que devolveria essa gaita novinha em folha há um tempo.
- Mas seu filho já não é grande?
- É, lá no céu.
   Senti calafrios.
- Queria te dar um presente.
   Entreguei minha gaita vermelha.
- Como...você?
- Segredo. Sabe tocar?
   Sem cerimônias, ele me deu um forte abraço. Ele chorou. Eu também, quietinha.
   Então tocou uma música que pela primeira e última vez ouvi, mas que nunca mais esqueci.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Capítulo 2

   Certa tarde, em um feriado parado de São Paulo, assistimos a um filme nas sombras. Aquele era meu primeiro filme e meu primeiro feriado em "casa".  Minha mãe tinha o hábito de sempre arranjar coisas para eu fazer e lugares para ir antigamente. Então, estava bem animada com eles, ainda mais, porque titia disse que no filme em vez de desenhos, pessoas apareciam. Estava prestando atenção à televisão que de nomes passou a mostrar uma vida diante de nós, sentadinhos no sofá.
   Estava muito entretida, até que um pássaro voou rapidamente na janela e eu o acompanhei com o olhar, e em seguida com o corpo, levada pelos pés. Logo, vários passaram rapidamente e pensei na senhora gorda do filme por um instante, vendo-os sumirem da minha vista. Ela se tornara feliz depois de jogar todas riquezas fora e viver uma outra vida. Aquele filme era tão real...Com certeza, eu podia fazer o mesmo e quem sabe, ser feliz também. Olhei para baixo como sempre, vendo as pessoinhas; e tive minha mais brilhante, amarga ideia, de dar meus souvenirs às pessoas da rua. Quem sabia, assim, eu jogava meu pequeno e profundo rancor pelos meus pais que me deixaram presa no passado.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Capítulo 1


  A cada viagem que papai fazia ganhava um souvenir. Ele estava sempre batendo e fechando a porta de casa. Ainda sim, essas lembrancinhas me voltavam ao sorriso largo dele, quando o via de vez em nunca.
  Nem sempre gostei deles porque as vezes eles não eram lá tão bonitos. Também, porque tudo isso ia me gerar um vício. Mas isso fica para depois.



  Nossa família até meus 8 anos era normal, falava minha mãe. Mas não achava nada normal ouvir brigas feias deles no quarto ao lado e em sequência, os choros altos da mamãe amaldiçoando-o a noite inteira, palavra por palavra.
  Aqueles amontoados de gritos geraram uma explosão, enfim. Então, no telefone, pedi ao tio Vinícius para cuidar de mim, porque mamãe estava sumindo e eu estava ficando com medo de ficar sozinha em casa. 
   Levei comigo toda minha coleção de souvenirs e titio veio me buscar junto com tia Lucy e Laurinha, de 1 ano. Mal sabia eu, que depois de me mudar naquele singelo momento. praticamente nunca mais veria mamãe.

   O bairro que passei a morar era movimentado. Antes morávamos no Morumbi e lá tudo eram fortalezas e árvores. Como meus tios moravam no primeiro andar, e o prédio ficava bem pertinho de uma avenida, passei a assistir as pessoas depois da escola. Era tanta gente aqui e ali, que até comecei a inventar historias para alguns que passavam pela rua. As vezes também, quando parava para olhá-las simplesmente em ócio, apoiando a cabeça, pensando vagamente...